“Carrapato”. colagem minha, 2024.
sonhei que transava com Margaret Qualley.
depois do sexo, percebia uma infestação
de carrapatos na palma das minhas mãos,
engruvinhadas por artrópodes se reproduzindo
na camada subcutânea. com as unhas, eu
rasgava a pele para espremê-los; apertava,
como quem persegue cravos, com força, até
expulsar os indivíduos adultos marrons de
oito patas, e os filhotes esbranquiçados
aparecerem. entrava em desespero, porque
sabia que só me livraria daqueles monstrinhos
se ingerisse um remédio, uma substância.
no mesmo dia, meu amigo, Kleber Rocha, me convidou para ir ao cinema, ver A substância. tive a sensação de que a história demora pra engrenar, a coisa se torna de fato interessante no terceiro ato, quando a monstruosidade e a bizarrice dão as caras, depois que a bela e jovem estrela Sue (Margaret Qualley) rompe o “pacto fáustico” [parafraseando minha amiga Larissa Bontempi] firmado com A substância — um esquema farmacológico clandestino capaz de gerar a “melhor versão”, um duplo, do usuário — , e Elizabeth Sparkle (Demi Moore) começa a sofrer as consequências, ao se tornar gradativamente uma criatura monstruosa, disforme, desprovida de beleza, sucesso e fama.
após adentrar o universo da teoria queer, passei a ver o mundo por essas lentes e não consigo mais desver. há meses, influenciada pela minha amiga Orquídea Garcia, venho lendo The Queer Art of Failure, de Jack Halberstam, um livro que tem gerado grandes revoluções internas, violentas, destruidoras e bastante reconfortantes, porque dão forma e conceituam questões que me atravessam há tempos.
o subcapítulo “Quarto lugar: a arte de perder”, do capítulo 3 “A arte queer do fracasso”, descreve o projeto fotográfico da artista Tracey Moffat, dedicado a registrar o momento em que atletas ficam em quarto lugar nas Olímpiadas de Sydney, em 2000. seu objetivo era fotografar “os perdedores”, capturar “imagens de atletas brilhantes que não chegaram lá”. Halberstam comenta:
Essas imagens nos fazem lembrar que vencer é um evento multivalente: para que alguém vença, alguém precisar fracassar, e então o ato de perder tem sua própria lógica, sua própria complexidade, sua própria estética, mas, em última estância, também sua própria beleza.
essa dicotomia entre vencer e perder tem seu ápice, no filme, quando Sue, o duplo jovem e perfeito, surge a partir do corpo de Sparkle, estrela de Hollywood em decadência, quase como uma substância spinoziana, que “é em si e se concebe por si mesma”. num banheiro branco e asséptico, o espelho revela e testemunha a bipartição num processo digno de um bom body horror. que testemunha seria melhor do que um espelho?
em Aventuras de Alice através do espelho, de Lewis Carrol, Alice, dialogando com sua gata Kitty, fazendo de conta que ela era a Rainha Vermelha, afirma que “[tudo] o que a gente vê do outro do lado do espelho é igualzinho […], só que ao contrário”. através do espelho, nomes não têm utilidade, peças de xadrez ganham vida, dimensões se distorcem, animais conversam. Alice “é apenas uma espécie de imagem no sonho do [Rei Vermelho]”. o tempo perde a linearidade, a Rainha Branca afirma que “a memória que só funciona para trás é pobre”, já que ela é capaz de se lembrar de “coisas que aconteceram daqui a quinze dias”.
é como se o espelho revelasse um mundo fantástico, de sonhos, do sonho de Sparkle em converter o fracasso no sucesso de outrora. mas, como alerta a Rainha Vermelha à Alice: “Uma vez que tenha dito qualquer coisa, é definitivo, e você tem que aguentar as consequências.” desobedecido o pacto de viver estritamente por sete dias em cada uma de suas versões, a consequência sofrida por Elizabeth é, aos poucos, ir perdendo sua aparência humana para ganhar um aspecto monstruoso, asqueroso, repulsivo. o ser humano fracassa, e o monstro vence.
e é justamente isso que me fascina quando atravesso as lentes da teoria queer: não me interessa mais ser humana, me interessa ser monstra.
em Ideias para adiar o fim do mundo e em A terra dar, a terra quer, Ailton Krenak e Nego Bispo, respectivamente, tensionam o conceito de humanidade:
As andanças que fiz por diferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esse clube da humanidade. E fiquei pensando: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?”. Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária?
Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são os eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade.
para Krenak, o clube da humanidade é um grupinho seleto, nada diverso, estruturado por instituições colonialistas, dadas como universais, por exemplo “Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)”, que criam diretrizes globais e ditam os parâmetros de como a(s) sociedade(s), ao redor da terra, composta(s) de pouquíssimos humanos e muitos subumanos/grupos subalternizados devem ser organizados/tutelados.
Nego Bispo chama a atenção para a alarmante e desastrosa imprudência da bipartição entre natureza e humanidade. se os humanistas cosmofóbicos “transformam a natureza em dinheiro”, talvez seja possível afirmar que modificações corporais com o objetivo de pertencer ao padrão de beleza ditado pelo clube da humanidade, afim de obter reconhecimento, inclusão, sucesso, fama e fortuna sejam um sintoma de cosmofobia.
e quem pertence ao clube da humanidade? Aza Njeri responde: “o Senhor do Ocidente (homem branco)”. todo o resto fica de fora. Njeri costuma ilustrar esse conceito com o personagem de Leonardo DiCaprio em O lobo de Wall Street. em A substância, diria que o senhor do ocidente é incorporado por Harvey (Dennis Quaid), que, ao mastigar camarões de boca aberta, de maneira asquerosa, nojenta e repulsiva, comunica a Elizabeth Sparkle que ela envelheceu, se tornou obsoleta e não serve mais para estrelar o seu programa de TV.
Amei!!! Especialmente a costura feita com os autores.
Que texto incrível! Fui até citada, não podia deixar de vim aqui prestigiar, comentar e divulgar! Com todas as monstras que sinto dentro de mim ✨🫶🏾