Por que o feminismo precisa da Beyoncé*, por Brittney Cooper [tradução: Jade Medeiros]
Ela é mais honesta em relação à dificuldade das mulheres negras de se apoiarem do que qualquer uma de nós, feministas profissionais, jamais fomos.
“Club Renaissance”, 2023, colagem digital, de Astronauta de Mármore
Amizade com garotas negras sempre salvou a minha vida. Eu olho com desdém para qualquer mulher negra que não tenha amigas negras, para qualquer mulher que ouse falar que se relaciona melhor com homens do que com mulheres, para qualquer uma que fale sem parar que “não confia em mulheres”. Se você diz ‘foda-se o patriarcado’, mas não anda com outras mulheres, então é mais provável que o patriarcado tenha fodido você, tenha seduzido você a acreditar que os homens se importam mais com o seu bem-estar do que as mulheres.
Isso não é verdade.
Sou de um tempo que garotas negras falavam em voz alta que não tinham amigas. Elas tinham colegas. Isso sempre soou falso para mim, talvez porque meu lado introvertido não tinha absolutamente nenhum interesse em perder muito tempo com sorrisos falsos para pessoas com quem eu não poderia ser eu mesma. Queria amigas para ser sarcástica, dar risadinhas, passar bilhetinhos, compartilhar segredos. Queria pessoas que me apoiassem. Me preocupa um mundo em que meninas negras, no processo de se tornarem mulheres, sejam ensinadas a não confiar em mulheres. Nós nos perguntamos por que homens jovens odeiam mulheres, e, às vezes, a triste verdade é que suas mães, tias e irmãs agem como arma do patriarcado ao papaguear o coro “garotas não são confiáveis”.
Eu sonhava com uma família nuclear, porque eu comprei a ideia de que a forma como eu fui criada — filha de mãe solo, com uma família desajustada de tias, tios, primos e avós vindo junto no pacote — não era a ideal. Então, parte da minha história de sucesso envolvia ter tudo isso — casa, carro, carreira, homem bonito e filhos. Tudo bem querer todas essas coisas. Mas é perigoso comprar essa ideia num contexto em que não há análise de como e por que esses são os seus desejos. O feminismo me ajudou a reconhecer que havia outras versões de uma vida desejável.
Quando a fantasia nuclear patriarcal iludiu a mim e a toda uma geração de mulheres negras acima da média, foram as minhas amigas que celebraram o meu sucesso, me elogiaram, me levaram para sair, viajaram o mundo comigo, me apoiaram nos momentos de grandes decisões e estiveram ao meu lado nos momentos trágicos.
Se as mulheres negras não aprenderem a amar outras mulheres negras (cis e trans, normativas e não normativas e todas as variações), será o nosso fim. Um dos maiores fracassos do feminismo é o fracasso em insistir que o feminismo é, acima de tudo, amar sem ressalvas, verdadeira e profundamente, mulheres.
Beyoncé aprendeu essa lição sobre o feminismo melhor do que ninguém. E ela é uma das maiores vítimas do fracasso em amar mulheres entre feministas negras. Até o lançamento de sua obra-prima, Lemonade — um álbum tão autoconsciente a respeito da vida interior, lutas e emoções da mulher negra, que até os maiores haters de Bey tiveram que reverenciá-la —, eu nunca tinha visto tanta difamação, em especial de feministas negras, em relação à Beyoncé. Nunca.
Elas simplesmente não acreditavam que aquela mulher negra linda, de pele clara, influente, superstar, podia amar outras mulheres negras de verdade. Para a maioria de nós, o seu privilégio por ser bonita nos lembrava das meninas más que enfrentamos aos 12, 13 anos — aquela idade em que todas nós nos sentimos profundamente incompreendidas e que temos a tendência de ser más com os outros, embora sejamos, ao mesmo tempo, o alvo de outras meninas más. Claro que não somos mais adolescentes, mas ver Beyoncé brilhar faz com que essa verdade específica venha à tona. É como se as meninas que sofreram bullying finalmente tivessem a chance de serem más, e, no que diz respeito à Beyoncé, elas abraçaram esse papel com gosto e absolutamente nenhum senso de ironia.
Beyoncé é minha musa feminista.
“Okay, okay, ladies, now let's get in formation ('cause I slay)”
Mas nem sempre foi assim. Lá em 1997, ela era apenas uma das membras de um grupo de garotas que eu amava, cantava a trilha sonora do meu último ano do ensino médio. Três anos depois, quando duas das membras do grupo original saíram, eu jurava que Beyoncé era a culpada e me recusei a comprar outros álbuns do Destiny’s Child. Mas sempre fui péssima em guardar ressentimento, e quando Bey lançou seu primeiro álbum solo durante o outono do meu primeiro ano da faculdade, eu voltei a bordo. Ao longo da década seguinte, ela se tornou Beyoncé, a mega superstar multitalentosa que conhecemos hoje, principalmente por manter garotas negras abastecidas de hinos para qualquer acontecimento cotidiano possível. Ela era a girl power personificada, então eu não precisava necessariamente ou esperava que ela tivesse uma crítica ao patriarcado ou fosse associada a um clube feminista. (A propósito, antes que puxem suas carteirinhas, esse clube não existe.)
“When I walk up to you baby/ You seem so shy/ What's the problem baby/ Never had a girl like I/ I can see right through you/ And you know you wanna be mine/ So get your act together/ 'Cause you're running out of time”
Até então, ela inspirava toda a minha melhor teorização feminista. Quando ouvi a música “Get Me Bodied”, de 2006, eu, sem dúvida, fiz uma ou duas “danças antiquadas”, conforme a música pedia, mas também refleti sobre a política feminista do corpo, e o que poderia significar para uma menina negra realmente se apropriar do próprio corpo, amá-lo e se sentir confiante nele. Quando ouvi “Upgrade U”, estremeci quando ela canta “I can do for you what Martin did for the people/ Ran by the men” [Posso fazer por você o que Martin fez pelo povo/ Conduziu pelos homens”] (tanto pelo erro gramatical quanto pelo caráter político ainda pior), mas me animei quando ela diz: “But the women keep the tempo” [Mas as mulheres mantêm o compasso]. Refleti bastante por muito tempo sobre o que significa para o corpo da mulher manter o compasso dos movimentos sociais. Algumas das minhas melhores teorias acadêmicas acerca do feminismo vêm de ponderar sobre que tipo de espaço Bey poderia estar criando para os lugares específicos nos quais mulheres negras podem estar e liderar. Em determinado momento, uma jornalista chamada Jane Gordon perguntou diretamente se ela era feminista. Essa pergunta foi feita a muitas cantoras negras antes de ser feita a Bey. Erykah Badu e Queen Latifah me vêm à mente agora. Ambas negaram a identificação com o termo, citando uma afinidade com “humanismo” no caso de Erykah, e o amor por homens negros no caso de Latifah. Beyoncé respondeu:
Acho que sou feminista de alguma forma. Não é algo que eu tenha decidido conscientemente; talvez porque tenha crescido em um grupo musical com outras meninas, e isso tenha sido benéfico para mim. Me manteve distante de muitos problemas e relacionamentos ruins. Minha amizade com elas é tão importante que jamais faria algo que pudesse romper a nossa união. Nunca quis trair essa amizade, porque eu amo ser mulher e amo ser amiga de outras mulheres.
Quando ouvi Beyoncé ressaltar que a amizade com outras mulheres era o centro do que era o feminismo para ela, parecia que ela tinha chegado na essência do que é tudo isso. Amar ser uma mulher e ser amiga de outras mulheres deveria ser o mote do feminismo. Se isso não for a sua verdade, então você não é feminista. Não sou muito de empurrar a carteirinha do feminismo para as pessoas, mas há coisas que deveríamos simplesmente poder falar a respeito.
Por fim, Beyoncé chegou a adotar a posição de Chimamanda Adichie em relação ao feminismo numa música chamada “Flawless”, de seu álbum autointitulado, lançado em 2013, na qual ela cita a seguinte fala: “O feminismo se refere à igualdade social, política e econômica das mulheres”, retirada da palestra de Adichie no TED Talk disponível no YouTube. O próprio erro de Adichie, no início de 2017, de não compreender que mulheres trans também são merecedoras dessa igualdade social, política e econômica talvez faça dela um ícone feminista problemático para muitas de nós. Quando questionada sobre mulheres trans, Adichie disse: “Há mulheres e então há mulheres trans.” E apesar de ser OK reconhecer que todos os tipos de mulheres, sejam brancas, negras, indígenas, latinas, asiáticas, cis, em não conformidade de gênero, trans, queer, bi ou hétero, possam ter experiências diferentes, não é legal agir como se as mulheres trans estivessem em alguma categoria totalmente separada da categoria mais geral de mulher. Isso é algo sobre o qual o feminismo precisa ser específico — não se trata de feminismo se os interesses de todas as mulheres, em particular os interesses das mulheres mais marginalizadas, não forem levados a sério.
“I woke up like this, I woke up like this/ We flawless, ladies tell 'em”
Quando penso sobre o motivo pelo qual Beyoncé é tão importante para mim como feminista, é a primeira definição que sempre ecoa, a qual ela parecia hesitante em pronunciar, o rótulo que ela parecia confusa em adotar. O seu feminismo de relações profundamente conectadas é aquele que escapa das nossas vistas na pressa de ter certeza de que o nosso feminismo nomeia cada “ismo” e cada categoria interseccional em articulação. Não importa se compreendemos a retórica corretamente, porém, se continuamos a tratar outras mulheres de maneira errada.
Alguns poderiam argumentar que Beyoncé não ajuda. Nessa mesma música feminista “Flawless”, o refrão enfatiza “bow down, bitches” [ajoelhem-se, cachorras], em uma batida contagiante do hip-hop de Houston. De imediato, vi minas negras feministas perderem a cabeça, indignadas com alguém tão poderosa quanto Beyoncé mandando-as se ajoelharem. Essa indignação parece enraizada em ignorância deliberada e desonestidade emocional. Ainda bem que o hip-hop sempre fez parte da minha jornada feminista, porque eu considero o apelo de Joan Morgan por “um feminismo corajoso o suficiente para mexer com as nuances” minha bíblia. Você pode estar profundamente investida em amar outras mulheres negras, mas ainda assim precisar afirmar em algum momento que cachorras precisam se ajoelhar. Em primeiro lugar, não considero que “cachorras” tenha um gênero específico. Chamo isso de perturbação no sexismo inerente à língua inglesa. Em segundo, se eu tivesse ouvido os hinos de Beyoncé aos 12, 13 anos de idade, em mais do que em algumas ocasiões apenas, eu poderia ter tido o desejo de dizer às minhas amigas Reina e Neisha que se ajoelhassem.
Amar garotas negras é complicado, mas se amar num mundo onde há sempre alguém pronto para te machucar é ainda mais difícil. Não estou tentando resolver a contradição de dizer ‘eu te amo’ para mulheres negras num dia e no dia seguinte mandar que se ajoelhem. Estou pedindo que sintamos a dor e a ofensa que torna esse espaço necessário. Estou pedindo que aceitemos a tendência universal de sermos más, as formas que temos de nos machucar e não estarmos disponíveis umas para as outras. Estou pedindo que nós aceitemos o dilema de Beyoncé, que é real para todas nós. Pelo menos, ela teve a coragem de se apropriar da desordem.
E é por isso que o feminismo precisa de Beyoncé. Porque ela é mais honesta em relação à dificuldade das mulheres negras de se apoiarem do que qualquer uma de nós, feministas profissionais, jamais fomos. Depois da Beyoncé, o feminismo não é mais reservado às mulheres negras com graduação e pós-graduação. De repente, o feminismo não é mais apenas a área de negras que leem bell hooks. Armada com as narrativas feministas na era digital, essa garota negra que construiu uma carreira como cantora em vez de ir para a universidade pode ser feminista também. E ela usa seu considerável poder cultural para espalhar a palavra do feminismo para as massas.
Eu não estava preparada para o ressentimento de muitas companheiras feministas negras. bell hooks, a acadêmica e pensadora que possibilitou que garotas negras como eu escrevessem livros como os que escrevi, chamou Bey de “terrorista”. Foi uma resposta à imagem de Bey na capa da revista Time, uma versão muito loira, quase branca, na qual a imagem dela se aproxima a de uma mulher branca de forma assustadora. Eu acho que hooks entendeu que Bey que estava flertando com a branquitude e se passando por branca de uma maneira fundamentalmente antinegro em vez de se afirmar para mulheres não brancas. Queria que ela tivesse dito isso no lugar despejar o vocabulário pesado de “terrorista” a torto e a direito. Outro grupo de feministas negras se reuniu e declarou que o feminismo de Beyoncé é “feminismo de puta”, o tipo de feminismo falso que, de acordo com elas, acompanha as políticas do trabalho sexual.
A fúria era eloquente, para dizer o mínimo. Transbordou em artigos de jornal, na tentativa de derrotar a marcha feminista de Beyoncé, como se fosse a peste bubônica vinda para exterminar séculos de esforços de ativistas negras. A fúria era eloquente, mas não justa. E, na maioria das vezes, eu a lia como um simples erro. Mulheres negras com fúria descontrolada e sem trabalho emocional podem causar danos reais.
As histórias da nossa origem feminista importam. Quando vi mulheres negras considerarem Beyoncé uma marca em vez de um ser humano, vi avançar uma retórica camuflada que permite que se distanciem dela e então a arrastam para a obscenidade sem remorso. A mim, soa: mulheres negras adultas usando o poder do feminismo para dar socos nas meninas malvadas de quem elas têm ressentimento desde a infância. Não sou terapeuta, mas sou a garota negra de outra garota negra e reconheço a dor de uma garota negra quando a encontro. Muitas de nós que não puderam ter o acesso ao privilégio de ser bonita, aquelas que não eram populares ou bacanas, aquelas que eram nerds e introvertidas, escreveram histórias e sonharam com uma vida de escritoras, cresceram e encontraram um lar no feminismo, um lugar onde eram vistas, um lugar onde outras estavam tão injuriadas com a injustiça como nós.
Mas, para muitas de nós, a primeira injustiça real que importava, que rasgou o nosso coração, não eram as falhas do relacionamento de nossos pais, ou os meninos que não deram bola para a gente, mas as garotas negras que nós queríamos que nos vissem e fossem nossas amigas, mas que nos ignoraram ou fizeram bullying com a gente. Eu acredito que a Beyoncé faça aparecer toda essa merda e que a análise feminista nos dê a linguagem para agredi-la com a nossa dor, sentindo como se estivéssemos fazendo justiça.
Não há jamais motivo justo para bater numa mulher negra, como se ela tivesse roubado algo, quando na verdade ela está reunindo os cacos de sua vida e tentando construir algo magnífico. A fúria mal direcionada é perigosa... mortal. Mas o poder do feminismo negro, de qualquer corrente, de fato, está em sua habilidade de evidenciar quais são as ações.
O que significaria fazer a pergunta: Por que a Beyoncé é atraída pelo feminismo? Se esse mundo feminista que nós pregamos é tão incrível, por que uma mulher negra como ela não ia querer fazer parte desse trabalho também? E se o lançamento do álbum confessional, 4:44, de seu marido, Jay-Z, é um indicador, talvez o feminismo tenha ajudado Bey a encontrar seu poder quando confrontou o parceiro infiel. O feminismo, com certeza, foi um lembrete reconfortante da minha valentia toda vez que fui forçada a colar os cacos do meu próprio coração.
Algo sobre a reflexão e a intencionalidade com a qual ela lidou publicamente em relação à sua jornada feminista parece autêntica para mim. Sim, minha disposição em acreditar no melhor de Beyoncé vem da minha insistência em acreditar no melhor que posso de mulheres negras. Não é algo pequeno ter a maior pop star do mundo na nossa turma. Ainda há muitas mulheres jovens que hesitam em reivindicar o feminismo para si, porque somos esnobes em relação a quem deve ser incluída.
Recentemente, eu tive que realizar uma intervenção acolhedora em uma jovem irmã com dificuldades em relação ao significado do feminismo. A jovem, estudante da Universidade de Howard, me enviou um e-mail me convidando para a apresentação de sua pesquisa no meu campus. Durante a apresentação de sua pesquisa sobre meninas negras, eu fiquei orgulhosa de seu profissionalismo e curiosa sobre a ausência considerável de teóricas feministas negras. Em seguida, eu a questionei sobre essa escolha. “Bem, Dra. Cooper, eu não tenho certeza sobre o feminismo... Parece que são apenas mulheres negras tentando forçar mulheres brancas a aceitarem e as incluírem. Eu ainda não superei como aquelas sufragistas trataram Ida B. Wells naquela marcha de 1913.” Ela estava certa. Um grupo de sufragistas brancas tinha tentado forçar Wells a acompanhá-las durante a marcha sufragista de 1913. Wells abertamente recusou e encontrou uma forma de se manifestar com a delegação de seu estado.
Brittney Cooper é professora de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade e de Estudos Africanos. Ela também é a Investigadora Principal e Diretora Fundadora do Laboratório de Equidade de Raça e Gênero (RAGE) na Rutgers, Universidade do Estado de New Jersey.
Conforme falei para a aluna, que tinha razões muito mais sofisticadas para rejeitar o feminismo do que eu quando era estudante — eu tinha certeza de que era “coisa de mulher branca”, e por sorte uma amiga me chamou amorosamente de doida e insistiu que eu lesse o ensaio de Deborah King sobre vários riscos —, eu me perguntei mais uma vez porque é tão fácil para mulheres negras ignorarem a importância do feminismo em nossa vida. Comecei a alertá-la sobre o óbvio: apesar do racismo das mulheres brancas, Ida B. Wells sentiu que tinha o direito de estar na marcha sufragista. Mulheres negras se importam com o feminismo, porque o sexismo e o patriarcado afeta a nossa vida também.
Então, compartilhei com ela algumas coisas que aprendi na minha jornada no feminismo. Primeiro, não sou apenas uma feminista que por acaso é negra. Eu sou uma Feminista Negra, F maiúsculo, N maiúsculo. Isso significa que aprendi o feminismo com mulheres negras, minha teoria e práxis feminista são situadas nas formas particulares que mulheres negras entenderam, pensaram e escreveram sobre os problemas do racismo e do sexismo através do espaço e do tempo. Meu feminismo não começa com Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton palestrando na Convenção de Seneca Falls, mas com Maria Stewart, uma abolicionista negra que instruía homens e mulheres, brancos e negros, em Boston na década de 1830. Quando Sister Stewart perguntou: “Quanto tempo as filhas justas da África serão forçadas a enterrar seu intelecto e talento sob o peso de panelas e caldeiras de ferro?” Eu vejo na sua pergunta uma insistência em priorizar o bem-estar de mulheres e meninas negras. Quando ela então se direciona a mulheres negras e diz: “Fomos possuídas, sem dúvida, por uma propensão muito mesquinha e covarde, apesar de eu desaprovar uma propensão insolente e impertinente.” Eu a vejo às voltas com as formas que a fúria tem sido nossa companhia constante e desafia mulheres negras a fazer essa fúria valer a pena. Ela conclui ao dizer para mulheres negras: “Você pergunta a propensão que eu queria que você tivesse...? Lute pelos seus direitos e privilégios. Saiba a razão pela qual você não pode alcançá-los. Aborreça-os com a sua importunação. Você só pode morrer se tentar, e nós com certeza morreremos se você não tentar.” Esse é o meu feminismo negro — o tipo de feminismo que vai canalizar toda a fúria para alcançar a liberdade ou morrer tentando.
Em segundo lugar, eu tenho muita coisa feminista para fazer em vez de perder meu tempo odiando mulheres brancas. A qualquer momento que uma mulher branca diz algo errado na esfera pública nos dias de hoje, há um exército de escritoras negras feministas com artigos prontos para arrancar sua peruca, e meses depois ela vai levantar a cara do chão. Perseguir uma mulher branca na internet vai fazer você ganhar muitos cliques e curtidas. Mas você vai ficar exausta no fim das contas, e, com frequência, as atitudes de mulheres brancas não terão mudado nem um pouquinho. Não estou dizendo que mulheres brancas não fazem coisas desleais. Quase sempre, elas são inimigas diretas do trabalho de dar fim ao patriarcado e ao racismo. Mas, ainda assim, não podemos permitir que se tornem o centro de uma conversa que não diz respeito a elas. Outras feministas negras me tiraram (ou tentaram) quando afirmei isso. Disseram que eu estava acobertando mulheres brancas. Você me conhece? O feminismo negro não é um projeto reacionário. Não se trata do dano causado pelas mulheres brancas. Não apenas ou essencialmente. O feminismo negro trata do mundo que meninas e mulheres negras podem construir se todos os inimigos se levantarem e nos deixarem trabalhar. Quando eu falo sobre a fúria eloquente como um superpoder, é com a ressalva evidente de que nem todo mundo vale o seu tempo ou a sua fúria. O feminismo negro me ensinou isso. Meu trabalho como feminista negra é amar mulheres e meninas negras. Ponto-final.
A terceira coisa que o feminismo negro me ensinou é que já estive disposta a permitir que a política negra de orientação nacionalista, narrada amplamente por homens negros, me fizesse deixar de lado minhas próprias necessidades e interesses políticos para focar nos interesses e necessidades deles. É estranho, nesse momento político, que as feministas negras se ressintam de mulheres brancas mais do que se ressentem de homens negros, porque quando penso nos danos com os quais tive que lidar e quem me causou mais dor, mais violência física e emocional, sempre, sempre, sempre foram os homens negros. Eles é que atiram em nós, nos traem, nos batem e nos desvalorizam. Ainda assim, quando um jovem negro é morto pela polícia, meu cu vai para a rua gritar que “vidas negras importam.” Quando mulheres negras são mortas, os homens negros nunca se organizam para planejar atos em solidariedade a nós. Apesar de nossos irmãos não serem leais, nós insistimos em comparecer por eles. Em um mundo onde a Negritude, N maiúsculo, importa tanto quanto importa, não tenho certeza se essa abordagem obviamente contraditória da nossa política feminista vai mudar. Quando se trata dos nossos irmãos, a merda é e sempre será complicada.
Depois de colocar tudo isso para fora, percebi que pareço uma evangelizadora feminista e que talvez tenha cercado a aluna um pouco demais. Então, recuei e apenas insisti que a jovem estudante da Howard não deixasse a sua herança política e intelectual para trás por causa das formas com as quais mulheres brancas agem de modo geral. Ela me ouviu, mas ainda assim parecia cética pra cacete. Eu acho que mereci por todo o falatório maluco que fiz na época.
É por isso que acho preocupante uma política feminista negra que perca todo seu tempo, por um lado, derrubando mulheres negras que não sejam consideradas radicais o suficiente e, por outro, mulheres brancas e sua relação com o racismo. Stewart não disse que não devíamos tratar mal os brancos. Ela disse o contrário. Mas ela também nos lembra que mulheres e meninas negras deveriam estar no centro.
Meu feminismo negro mantém meus olhos na recompensa, a recompensa são mulheres e meninas negras. Precisamos umas das outras para sobreviver.
Do livro Eloquent Rage: A Black Feminist Discovers Her Superpower [Raiva eloquente: Uma feminista negra descobre seu superpoder, ainda sem tradução no Brasil], de Brittney Cooper.
*Artigo originalmente publicado na revista Cosmopolitan em 14 de fevereiro de 2018, traduzido por mim em junho de 2024.
*A colagem “Club Renaissance” foi gentilmente cedida por Astronauta de Mármore.