“para não dizer que não falo de amor”. colagem minha.
não sei muito bem qual é o meu estilo de escrita, como definir meu trabalho, meus temas, meus interesses. mas algumas coisas eu tenho claras, sei o que não quero: não tenho disposição pra escrita autoajuda, não tenho a intenção de afagar — a não ser em ocasiões muito específicas. prefiro a ideia do chute no estômago.
não segui o conselho de meu ex-marido de fazer aulas de luta, talvez a minha luta seja esfaquear com as palavras.
compreendo a função terapêutica da escrita, do ato de contar e ouvir histórias, como laboração psíquica. é claro que a literatura, seja lendo ou escrevendo, ocupa também esse lugar na minha vida.
no entanto, percebo que a ideia de terapia vem sendo muito associada à cura e/ou resolução de problemas. bem, essa certamente não é a minha intenção. eu quero que meus textos sejam de encontro e de mergulho com a doença, com a podridão, com o problema, com a crise. quero que as minhas letras afoguem. calma, não quero provocar morte. ou talvez queira. [não deve ser por acaso que gozo em francês seja chamado de “la petite mort” ou “a pequena morte”.] mas proponho um afogamento passageiro, que seja possível voltar à superfície com os pulmões ansiando por ar. tipo aquela carta do tarô que nunca indica morte física, mas mudança.
a gente vem de algum lugar. que lugar é esse? quem veio antes de nós? quem são as nossas referências? nada se cria no vácuo, a partir do nada. há uma origem, uma raiz, um fundamento.
como macumbeira, preta e herdeira das tradições exuzíacas que sou, também aspiro por desencontros, por desencontros de magia e de traquinagem e de desordem que só Exu proporciona.
e tenho fundamentos para isso.
fundamento i:
quando comecei a me interessar por livros de autoajuda na adolescência, minha mãe me deu um conselho muito importante:
— não leia autoajuda; leia literatura, romances, ficção. lá você vai encontrar a ajuda de que precisa.
esse conselho só fez sentido completo depois de ler “Cem Anos de Solidão” de Gabriel García Marquez, aos 28 anos. uma obra que escancara, com doses de magia, as entranhas da humanidade e, a despeito de tudo aquilo que habita as entranhas e que escapa delas também, revela aquele troço do qual costumamos fugir, mas no qual tropeçamos com muita frequência: a solidão. a inescapável solidão.
é por esse terreno árido e fértil que pretendo navegar. terreno pindorâmico, filho de Abya Yala. ex-colônia que continua a ser colonizada incessantemente, de identidades despedaçadas, de sangue esparramado e de brio. construído em meio a histórias-mitos-farsas escritos e histórias-mitos-fundantes oralizados, que dançam com a magia-técnica, com o encanto e o desencanto, com o real, as realezas e o surreal.
é dessa terra à beira-mar, da periferia daquele centro localizado além do Atlântico Negro, dessa lama de Nanã — da qual sou feita —, desse entremeio, desse meio do caminho, dessa borda, que eu venho. e é nela que pretendo aprofundar minhas raízes para talvez, um dia, gerar algum fruto.
fundamento ii
quando entrei na graduação em História da Arte, eu não tinha definição alguma para arte, ela chegou já no fim dos meus estudos. é verdade que as artes podem ter inúmeras definições e proposições próprias. mas se literatura é arte, a minha motivação para tal vem da acepção de Ricardo Basbaum em “Além da Pureza Visual”:
as artes plásticas seriam, deste modo, uma espécie de campo invertido do pensamento, um saber ao avesso — ou um avesso do saber —, constantemente PRESSIONANDO E PROVOCANDO TURBULÊNCIAS NO CONJUNTO DOS PENSAMENTOS ESTABELECIDOS.
é a partir dessa ideia que quero que minha escrita caminhe: seja no trânsito do voo, provocando turbulências; seja na borda entre placas tectônicas, provocando terremotos; seja meio na terra, meio na água, na lama, provocando afundamentos, afogamentos passageiros. espero que a caminhada tenha algum destino, mas não cabe a mim ter qualquer controle sobre ele. isso eu deixo para você, que me lê.
entendo que a arte deva funcionar nessa comunicação. no encontro ou desencontro, no meio do caminho entre o objeto de arte — em qualquer linguagem — e e fruidore. que essa interlocução não tenha rédeas, que seja permeada pela magia, pela macumba — técnica ancestral daqueles que me precedem.
fundamento iii
[7:47 PM, 05/10/2022] Jade Medeiros: escrever sobre a solidão de ser uma leitora de gente branca a vida inteira até chegar em Conceição Evaristo aos 26 anos
[7:47 PM, 05/10/2022] Jade Medeiros: sempre gostei de ler e escrever, mas foi a partir desse encontro que a minha identidade como escritora começou a surgir de maneira mais intensa
Conceição Evaristo, a primeira mulher negra brasileira que li aos 26 anos, o seu “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, disse:
Quando estou escrevendo e quando outras mulheres negras estão escrevendo, me vem à memória a função que as mulheres africanas — dentro das casas-grandes, escravizadas — tinham de contar histórias para adormecer a casa-grande. Eram histórias para adormecer. Nossos textos tentam borrar essa imagem. Nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos.
é isso. em respeito à memória das minhas ancestrais, eu não vou fazer cafuné para que você relaxe, a não ser em alguns momentos específicos — caso você seja alguém cuja identidade, subjetividade e humanidade tenham sido estraçalhadas pelo colonialismo insistente (sobretudo em consequência da diáspora forçada) —, aí sim pretendo promover algum afago, se estiver ao meu alcance, porque eu tenho minhas limitações, contradições e estou tentado reunir meus cacos.
desde Conceição, essa gigante da nossa literatura, — que tem promovido ao longo da minha iniciante carreira como escritora encontros vigorosos e reboliços aconchegantes — passando por outras muitas mulheres negras que tenho lido e partilhado poesia-magia-macumba, venho tentando fazer uma colagem com os pedaços rasgados da minha subjetividade e construindo a minha identidade própria.
identidade que não está pronta, nem terminada, mas em construção. assim como esse texto, que provavelmente terá ainda desdobramentos conforme meus mergulhos na literatura, em especial a decolonial, se aprofundem.
Laroyê!
dito isso, divulgo aqui alguns poemas que compartilhei com o mundo recentemente:
Participação na coletânea “Versão brasileira: a voz da mulher”, que pode ser baixada gratuitamente aqui:
ou adquirida a R$1,99 na Amazon (gratuita para quem assina Kindle Unlimited):
o poema que consta da coletânea:
Que texto mais lindo e potente!!!