fui ao cinema com a minha família assistir a “Não! Não olhe!” de Jordan Peele.
levantei da poltrona depois de umas duas horas e meia falando:
— não gostei. não vi sentido naquilo.
no dia seguinte, comecei a trocar ideia com meu irmão sobre o filme. minha cunhada enviou no grupo de WhatsApp da família o vídeo do canal do PH Santos no YouTube oferecendo algumas possíveis interpretações.
a partir dessas trocas, comecei a entrar na pira do OLHO.
Grete Stern. The Eternal Eye. 1950.
se eu pudesse traçar uma genealogia dos termos-chave do filme, eles seriam:
olho — visão — imagem — fotografia — cinema — vídeo — televisão — imagens de vigilância — câmera digital — transmissão em tempo real — imagens de controle — espetacularização
Jordan Peele faz um passeio pela evolução imagética a partir das primeiras imagens analógicas em movimento até as imagens digitais dos dias de hoje, para as quais somos tragados, abduzidos, e pelas quais somos vigiados, controlados o tempo todo, a todo instante.
o desenrolar do enredo tem uma gênese: o primeiro filme da história produzido em 1878 pelo fotógrafo Eadweard Muybridge, em q vemos um homem negro cavalgando um cavalo preto.
Vilém Flusser, em seu ensaio “Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente” publicado em 1986, “pretende iluminar o último ato da tragédia ocidental com luz penetrante” e nos diz q:
“(...) as imagens técnicas [fotos, filmes, vídeo, imagens sintetizadas por computador]*, tais quais vão emergindo em torno de nós, e tais quais vão absorvendo o pensamento conceitual, crítico, vão mergulhando-nos na noite escura da imaginação emancipada da crítica disciplinada. De modo que toda a história ocidental, essa luta mais que trimilenar do conceito [texto]* contra a ideia [imagem]*, vai se revelando atualmente comédia de erros. Comédia, no entanto, que para nós, os nela engajados, não deixa de ser trágica: as imagens novas são nossa derrota.”
* conteúdo entre colchetes adicionados por mim a partir da leitura completa do ensaio.
ou seja, para Flusser, a supremacia da produção de imagens sobre a produção de textos é imperativa e acachapante. quanto a isso, não resta dúvidas. embora esteja eu aqui tentando escrever e produzir algum pensamento conceitual. isto posto, não concordo com a afirmação apocalíptica de q essas imagens novas são nossa derrota definitiva.
apesar de eu ser uma pessimista assumida, existe alguma pulsão de vida em mim. como diria Ailton Krenak, é preciso formular “Ideias para adiar o fim do mundo”.
“Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer pra escapar dessa’. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras, que falam mais de 150 línguas e dialetos.”
ouso dizer q o fim do mundo já está sendo adiado pela produção de textos e de imagens, não dos brancos, mas de todos os povos q foram colonizados — em especial os pretos e indígenas nessas terras de Abya Yala. filho de Abya Yala, fruto da diáspora africana estadunidense e imperialista, Peele se apropria do terror e da derrota produzida pelas imagens técnicas e os recria em mais uma imagem técnica, o cinema. ele usa o suporte imagético cinematográfico para esgarçar todas as consequências da avalanche de imagens q nos assola.
mas como ele faz isso?
pois bem, Jordan se apropria do filminho de Muybridge e cria uma narrativa a partir dele. quem é o homem negro q aparece cavalgando? a série de imagens em movimento, ancestral do cinema, concedeu fama e reconhecimento ao fotógrafo. mas quem é aquele personagem?
como bem disse a grandiosa Conceição Evaristo no episódio #150 do Podcast Angu de Grilo a respeito do livro “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves,
“A ficção entra justamente nesse espaço lacunar entre o desconhecimento ou o esquecimento. E acho que a história dos povos diaspóricos é marcada pelo esquecimento, é marcada pelo desconhecimento. Então, a ficção nos funda como afro-brasileiros, nos funda como afro-diaspóricos. (...) A ficção nos salva, o que a história como ciência não disse de nós ou disse de uma maneira deturbada ou camuflou, a ficção nos cola nesse solo brasileiro, e ela preenche esse vazio, essa trajetória até chegar no solo que nos dá uma nacionalidade, uma nacionalidade hifenizada.”
a ficção afro-diaspórica preenche o vazio do desconhecimento sobre nossa própria história e sobre o nosso papel na história ‘dos brancos’. o cineasta ficcionaliza a imagem de Muybridge e cria uma narrativa para o cavaleiro.
ele seria um ancestral dos irmãos O.J. (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer), herdeiros do rancho Haywood Hollywood Horses de criação e treinamento de cavalos para a indústria do entretenimento. a partir daí, podemos pensar no papel dos negros na indústria cinematográfica e televisiva. a eles foi delegada uma atribuição à margem, q não está no foco dos holofotes. os negros estão nos bastidores, fazendo o trabalho braçal e desaplaudido de domar os animais selvagens, da mesma forma q os brancos tentam fazer conosco: nos domar.
O.J. cumpre o papel de treinamento dos animais. o personagem de Kaluuya faz um contraponto à personagem de sua irmã Emerald, q sonha com um lugar ao sol na indústria do entretenimento, super antenada às novas tecnologias e sem interesse pelo rancho. um homem de poucas palavras e pouco afeito ao mundo do espetáculo, vive recluso e se dedica completamente aos animais.
ele sabe controlá-los, sabe lê-los. e o mais importante, aconselha: “não olhe nos olhos deles”. não encare a fera, não olhe nos olhos do animal selvagem, não os enfrente para não levar um ccoice.
não é incomum a queixa entre pessoas negras de sua invisibilidade, de não serem vistas, de não serem reconhecidas. o q os brancos temem quando se recusam a olhar em nossos olhos? qual o perigo em nos ver? não por acaso, o cavalo Lucky (Sortudo, em português), q acompanha O.J. na maior parte do filme, é preto assim como o cavalo de Muybridge.
há uma cena bastante grotesca, baseada em fatos reais, retratando um episódio de um programa de TV q traz o cotidiano de uma família composta por pessoas brancas e por um menino de origem asiática. eles convivem com um chimpanzé como se ele fosse um “membro da família”.
em um acesso de fúria, o chimpanzé mata todos os membros brancos da família durante as filmagens, mas poupa o menino asiático, escondido embaixo de uma mesa. antes de ser brutalmente assassinado pela polícia, o animal dá um toque de mãos como quem diz: “tamo junto, parça!”. essa cena embasa a minha teoria de q os racializados são comparados a animais selvagens a serem domados pelos brancos.
o ápice da trama se dá em torno de um objeto voador não identificado q sobrevoa o rancho Haywood Hollywood Horses e seus arredores abduzindo os cavalos. o evento aterrorizante para O.J. e Emerald serve de atração para os visitantes do parque temático Jupiter’s Claim de Jupe Park (Steven Yeun) - o menino agora crescido de origem asiática sobrevivente ao ataque do chimpanzé.
enquanto os irmãos Haywood fazem uma força-tarefa para buscar compreender o comportamento do objeto com a ajuda do técnico de informática Angel (Brandon Perea) – aqui faço questão de salientar q também se trata de um personagem racializado de origem latino-americana –, instalando câmeras de vigilância [ALÔ, IMAGENS TÉCNICAS DE FLUSSER] pela propriedade para captar os movimentos do OVNI, Jupe tenta domá-lo, controlá-lo e usá-lo de acordo com seus próprios interesses para gerar entretenimento e lucro ao seu parque. bem, não deve ser difícil imaginar o destino de Park e dos espectadores: todos tragados pelo bichão.
O.J., por outro lado, observando atentamente as imagens e com sua bagagem de adestrador de cavalos, percebe um padrão no procedimento do OVNI: ele só abduz aqueles q olham diretamente para ele. ou seja, não se trata de uma nave extraterrestre, mas de um animal com vontades e desejos próprios! o conselho “não olhe nos olhos dele”, antes em razão do cavalo Lucky, agora serve também para o bichão misterioso.
aqui, pausa para enaltecer a tradução do título para “Não! Não olhe”, q faz muito mais sentido em português e nos oferece essa rica camada de interpretação do q o título original em inglês “Nope”, uma espécie de gíria para “não”.
voltando. após descobrir o segredo do animal, O.J. lidera a missão para finalmente detê-lo e acabar com seu potencial destrutivo. não entrarei em detalhes para não dar spoiler do final do filme.
e enfim minha pira é a de q o ovni/animal é, na verdade, UM OLHO GIGANTE. assim como a câmara obscura, ancestral da câmera fotográfica, reproduz a tecnologia do olho humano de captar a luz do ambiente e projetar a imagem observada na retina, o bichão é uma espécie de metáfora para as imagens técnicas de Flusser responsáveis por nossa grande derrota.
imagens essas produzidas pela indústria cultural, pelos veículos de comunicação em massa e pelas câmeras de vigilância, q nos tragam, nos abduzem e nos massacram. apesar do tom apocalíptico, há um homem negro, adestrador de cavalos, capaz de adiar o fim do mundo.