vista do rio Guamá da Estação das Docas, em Belém do Pará
NÃO CHORO
MEU SEGREDO É QUE SOU MOÇA ESFORÇADA
FICO PARADA, CALADA, QUIETA
NÃO CORRO, NÃO CHORO, NÃO CONVERSO
dia dos pais, assistimos à fita do natal de 1994 e do réveillon de 1995. eu tirando a mamãe no amigo oculto e dando pra ela de presente a poesia completa do Arthur Rimbaud em edição bilíngue traduzida por Ivo Barroso. quem diria que, no momento em que eu assistiria a essa fita, vinte e nove anos depois, estaria traduzindo poesia profissionalmente, e ela não estaria aqui para ver.
MASSACRO MEU MEDO
MASCARO MINHA DOR
JÁ SEI SOFRER
NÃO PRECISO DE GENTE QUE ME ORIENTE
eu passando a noite de natal com uma barbie noiva na mão e no dia seguinte fazendo carinho na moleira da minha prima de 6 meses de idade. quem diria que, vinte e cinco anos depois, teria sido ela a me oferecer a cereja do bolo para encerrar um casamento já falido.
SE VOCÊ ME PERGUNTA
COMO VAI?
RESPONDO SEMPRE IGUAL
TUDO LEGAL
na noite do dia 1º de janeiro de 95, o ano em que meus pais se separaram, e eu viveria o meu primeiro grande trauma, vovô Gabriel aplicando johrei no papai. quem diria que, vinte e seis anos depois, — divorciada, recém-demitida, morando só apenas na companhia de felinos pela primeira vez na vida —, teria sido ele a aparecer nos meus sonhos oferecendo conselhos apaziguadores.
MAS QUANDO VOCÊ VAI EMBORA
MOVO MEU ROSTO NO ESPELHO
MINHA ALMA CHORA
VEJO O RIO DE JANEIRO
50 anos do Transa — o álbum inglês do exílio forçado pela ditadura —, Caetano e Macalé. saí da casa de papai, passei em casa pra colocar as galochas e fui pra marina da glória debaixo de chuva, sem ingresso, esperar umas 4 horas, na lama, pra ver o véio pedófilo e viver o meu rock in rio de 1985. quem diria que a adolescente carioca exilada em Belém do Pará, sem poder sonhar em ir a shows dos ídolos setentistas mas que sonhava com o fim do exílio, veria a si mesma, dezessete anos depois, em transe, ali no aterro do flamengo, o palco de sua própria infância, ouvindo that’s rock and roll is all about ao vivo. Caetano teria convidado Gal se ela não tivesse partido no ano passado, teria convidado Angela Rô Rô se ela não estivesse fazendo show em Belém do Pará. ainda bem que convidou Jards Macalé.
COMOVO, NÃO SALVO, NÃO MUDO
MEU SUJO OLHO VERMELHO
NÃO FICO PARADA, NÃO FICO CALADA, NÃO FICO QUIETA
CORRO, CHORO, CONVERSO
quem diria que um show de Caetano me faria mergulhar na poesia de Waly Salomão saída da guitarra verde de Macalé e faria as lágrimas enfim brotarem ao ouvi-la na voz de Gal em casa no dia seguinte. as lágrimas entaladas pelo antidepressivo que combate a depressão surgida lá, na adolescência, no exílio. as lágrimas de ser o que se é. quando a adolescente emerge ao som de you don’t know me at all e encontra a menina das fitas dos anos 90, ela se depara com a adulta que lê, deitada na rede tal qual seus ancestrais amazônicos, os Caetés, em Ailton Krenak, que já “chegamos aqui como seres prontos.”* a gente é o que a gente é.
E TUDO MAIS JOGO NUM VERSO
INTITULADO
MAL SECRETO
*“Os Guarani fazem um batismo, o nhemogaraí, que ocorre no Ano Novo deles, por volta do dia 25 de janeiro. Nesse ritual, o pajé, dentro da opy, a casa cerimonial, canta e defuma as crianças novas que estão no colo de suas mães. Fica assoprando e olhando para elas, para ver quem são os seres que chegaram ali. Depois de realizados os cantos, o pajé se aproxima dos parentes e pergunta o nome das crianças. A partir de então elas passam a ser nomeadas. Esse lindo ritual carrega a mensagem de que nós já chegamos aqui como seres prontos. É de grande respeito dizer: esse ser já existe, não precisa de uma fôrma, ele quem nos informa quem é que chegou ao mundo.” (do livro ‘Futuro ancestral’)
Que lindo esse texto...❤️
Esse texto é você todinha!!!!