há alguns anos, em 2017 mais precisamente, me deparei com o seguinte meme na internet:
decidi que seria meu novo mantra para a vida, porque o fato de me sentir um lixo na maior parte do tempo me impedia de fazer coisas que gostaria. como talvez um psicanalista dissesse: é preciso ir à causa do sintoma, trabalhá-la, elaborá-la para então provocar alguma mudança no comportamento.
mesmo fazendo análise, outros tipos de terapia e praticando métodos de autoconhecimento por muitos anos, a sensação de ser um lixo permanece ainda muito presente em mim. mas, ao me deparar com essas frases tão simples, caiu a ficha de que talvez não precisasse necessariamente superar esse sentimento para realizar meus desejos.
parecia ser possível abraçar a condição de lixo e ainda assim fazer tudo o que quisesse. é claro que não é um processo fácil nem tão simples quanto o meme faz parecer. embora eu tenha ainda muitas inseguranças, tenho me arriscado mais, deixado algumas coisas, em especial meus escritos, saírem de mim e irem para o mundo - afinal, uma vez no mundo, deixam de ser meus 😁 - , apesar de eu enxergá-los muitas vezes como amontoados de lixo.
bem, desde 2017, eu venho pensando numa possível tradução para esse meme. e ela me parecia sempre impossível, em especial, por causa da segunda frase onde há um trocadilho e daí vem a piada.
a primeira “just because you’re trash doesn’t mean you can’t do great things” é simples de resolver: “não é porque você é um lixo que não pode fazer coisas ótimas.”
na segunda, “it is called garbage can, not garbage cannot.”, é que vem o desafio: “garbage” pode ser facilmente traduzido como lixo; “can”, no entanto, aceita duas acepções, o substantivo “lata” e o verbo “poder”. a graça da piada é exatamente brincar com esses dois significados.
eis que esse ano, em meados de julho, lendo o livro “Por um feminismo afro-latino-americano” da Lélia Gonzalez, me deparei, no ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, com os trechos a seguir:
Nosso suporte epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja, da psicanálise. Justamente porque como nos diz Jacques-Alain Miller, em sua Teoria da Alíngua:
“O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da linguagem, uma outra abordagem da língua, cujo sentido só veio à luz com sua retomada por Lacan. Dizer mais do que sabe, não se saber o que diz, dizer outra coisa que não o que se diz, falar para não dizer nada, não são mais, no campo freudiano, os defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais. Estas são propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e lógica, uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a lógica domestica.” (Jacques-Alain Miller, Teoria da Alíngua, p. 17)
Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim determina a lógica da dominação, caberia uma indicação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós sabemos) domesticar? O risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.” (pp. 77-78)
ler Lélia Gonzalez foi quase como fazer várias sessões de análise, eu tive muitos insights importantes que me ajudaram a elaborar muitas das minhas questões. Lélia me ajudou a ressignificar a condição de lixo. resolvi me apropriar do lixo, me assumir como lixo e admitir a potência de ser lixo. é possível apoderar-se daquilo que é descartado, do que está à margem, para transformá-lo em algo novo e pujante. a arte e a literatura, aliás, vêm fazendo isso – pretendo abordar esse tema em um texto por aqui em breve. afinal, o lixo vai falar, o lixo pode falar.
quando vi “o lixo vai falar”, me lembrei imediatamente do meme e comecei a considerar uma possível tradução a partir dessa linha de pensamento, mas ainda continuava difícil achar uma boa solução.
dia 30 de setembro, comemora-se o dia do tradutor, em homenagem a são jerônimo, o primeiro tradutor da bíblia do hebraico e do grego para o latim. no bojo das comemorações desta que é uma das minhas profissões, a querida tradutora Regiane Winarski propôs um desafio aos colegas e sugeriu que gravássemos um vídeo fazendo uma tradução de improviso, lendo em voz alta. eu, tímida e sem carisma, não tive coragem de me gravar, mas me senti impelida a pensar em uma tradução para o bendito meme. a partir da decisão de que traduziria “garbage can” como “lata de lixo”, comecei a pensar nas possibilidades de trocadilhos com o termo e foi como se Lélia me soprasse aos ouvidos o fim da segunda frase “não cala-te, lixo!”. o resultado:
arte: Vivian Bortolotti
“cala-te, lixo” gera uma paronímia com “lata de lixo” e mantém o caráter humorístico do original.
traduzir, muitas vezes, não é apenas transpor um amontoado de palavras de uma língua para a outra, mas sim buscar sentidos que sejam apropriados no contexto cultural alvo. não só, traduzir é reescrever, é também ser um pouco escritor/autor.
Amigaaaaa, impressionante como você ao traduzir se colocou subjetivamente, saindo da posição do infans, de quem fala na terceira pessoa, para a posição de que o lixo pode falar, tomando algo que você poderia ter jogado fora como seu!! AMEI AMEI!! Que texto lindo, pra mim que sou psicanalista, acho incrível esses relatos, mto obrigado por isso 💖