“a cigarra”. colagem minha.
em novembro passado, assisti à mesa “Ficção e fabulações afro-atlânticas” no Museu do Amanhã, com Saidiya Hartman e Eliana Alves Cruz, mediação de Yasmin Santos. além de ambas as escritoras serem afrodiaspóricas, Eliana brasileira e Saidiya estadunidense, há algo que une suas escritas: sim, eu vou apostar na escrevivência de Conceição Evaristo, minha diva máxima.
Saidiya desenvolveu um método, o qual chama de fabulação crítica, em que une a imaginação à pesquisa histórica, com o objetivo de preencher as lacunas que a história oficial hegemônica deixa em relação a nós, descendentes de africanos escravizados. Eliana, além dos romances históricos, ou seja, ficção calcada na história, se dedica a ficcionalizar fatos contemporâneos como forma de denúncia.
deixo aqui as palavras de Conceição para que tire suas próprias conclusões:
A ficção entra justamente nesse espaço lacunar entre o desconhecimento ou o esquecimento. E acho que a história dos povos diaspóricos é marcada pelo esquecimento, é marcada pelo desconhecimento. Então, a ficção nos funda como afro-brasileiros, nos funda como afro-diaspóricos. (...) A ficção nos salva, o que a história como ciência não disse de nós ou disse de uma maneira deturbada ou camuflou, a ficção nos cola nesse solo brasileiro, e ela preenche esse vazio, essa trajetória até chegar no solo que nos dá uma nacionalidade, uma nacionalidade hifenizada. (EVARISTO, 2021)
e nesse ensejo de fabulação e realidade, fiquei bastante extasiada quando Hartman, já em suas considerações finais (a partir da minutagem 1:34:00 do vídeo) e provocada por Yasmin, nos revelou que o famoso discurso intitulado “Ain’t I a woman?” (E eu não sou uma mulher?) de Sojourner Truth é apócrifo.
comenta ainda que, naquele momento, século XVIII e XIX, havia uma discussão racista exclusiva de humanidade. se hoje a humanidade só é concedida em sua inteireza apenas ao homem, branco, heterocis, cristão, imagine naquele tempo? então, os escravizados e ex-escravizados passaram a reivindicar a sua humanidade, paradoxalmente, de acordo com os parâmetros da época, ditados pelos seus respectivos algozes. é nesse bojo que devemos analisar o enunciado de Sojourner.
lá fui eu pesquisar o discurso “verdadeiro” e o encontrei aqui.
antes de tudo, é preciso levar em conta que Truth foi escravizada fugida, abolicionista e ativista pelos direitos das mulheres. nasceu em Ulster County, Nova York, e faleceu em 1883.
sua fala se deu na Convenção pelos Diretos das Mulheres em 29 de maio de 1851 em Akron, Ohio, numa época em que gravadores de áudio ou mesmo câmeras filmadoras não tinham sido inventadas, e ela mesma não sabia ler ou escrever. como seria possível, então, inscrever a realidade, o fato histórico, sem tais tecnologias? se é que mesmo hoje, já inventadas, elas dão conta de tal feito. bem, ficou a cargo de terceiros (um homem e uma mulher brancos), atravessados por suas próprias subjetividades, o registro das ideias de Sojourner. sendo assim, jamais saberemos com absoluta certeza o que foi dito. teremos acesso apenas à “fabulação acrítica” — para fazer um contraponto à “fabulação crítica” de Hartman —, e cabe a nós um senso analítico ao absorvê-la.
a primeira transcrição do discurso de Truth foi feita pelo jornalista Marius Robinson, que esteve presente na Convenção, e a publicou em 21 de junho de 1851 no jornal abolicionista, editado por ele, Anti-Slavery Bugle (1845-1861), algo como Clarim Anti-Escravidão.
a transcrição traduzida por mim:
1. Posso dizer algumas palavras? Eu quero falar algumas coisas sobre esse assunto.
2. Sou a favor dos direitos das mulheres.
3. Tenho tanto músculo quanto os homens e posso trabalhar tanto quanto eles.
4. Eu arei, colhi, descasquei, cortei e aparei, e algum homem pode fazer mais do que isso?
5. Ouvi muito falar sobre igualdade entre os sexos. Consigo carregar o mesmo peso que eles, comer a mesma quantidade de comida também, se eu a tiver.
6. Sou tão forte quanto qualquer homem que esteja aqui agora.
7. Em relação à inteligência, tudo o que posso dizer é: se uma mulher bebe uma caneca, e o homem uma jarra, por que ela não pode encher a caneca?
8. Não tenham medo de nos conceder direitos por medo de que os tomemos em demasia, não os tomaremos além do que a caneca pode conter.
9. Os pobres homens parecem estar todos confusos, sem saber o que fazer.
10. Por que, queridos? Se vocês têm os direitos das mulheres, os deem a elas e se sentirão melhores.
11. Vocês continuarão com seus próprios direitos, e elas não vão dar muito trabalho.
12. Não sei ler, mas posso ouvir.
13. Eu escutei a bíblia e aprendi que Eva fez com o que homem pecasse.
14. Bem, se as mulheres decepcionaram o mundo, elas precisam ter a chance de consertá-lo.
15. A Virgem Maria disse que Jesus nunca desprezou as mulheres e ela estava certa.
16. Quando Lázaro morreu, Maria e Marta suplicaram a ele com fé e amor para criar o seu irmão.
17. Jesus chorou, e Lázaro apareceu.
18. Como Jesus veio ao mundo?
19. Através de Deus que o criou e da mulher que o carregou em seu ventre.
20. Homem, onde está a sua parte nisso?
21. Mas as mulheres estão se levantando, abençoadas por Deus, e alguns homens estão se levantando junto com elas.
22. Contudo, o homem está em um lugar apertado, sobrecarregado pelos escravizados e com certeza entre a cruz e a espada.
noto que em nenhum momento, aqui, Truth duvida de sua condição de mulher ou mesmo se coloca numa condição de mulher negra muito distante da mulher branca. ela se equipara aos homens e se dirige especificamente aos homens brancos, utilizando-se de analogias cristãs, religião do colonizador que foi profundamente absorvida pelos negros estadunidenses, para persuadi-los a conceder os direitos às mulheres. apesar de sentir um tom revolucionário, para a época, ao reivindicar a igualdade entre homens e mulheres, sinto também um tom apaziguador e até submisso, para os meus olhos de hoje, ao suplicar ao homem branco a concessão de tais direitos.
já o famoso discurso apócrifo foi transcrito por Frances Dana Gage, presidente da Convenção pelos Direitos das Mulheres de 1851, e publicado em 23 de abril de 1863, quase 12 anos mais tarde e no meio da Guerra Civil, no jornal congregacionalista The Independent e no abolicionista National Anti-Slavery Standard em 2 de maio de 1863. a tradução pode ser conferida aqui:
a frase mais famosa “Ain’t I a woman?” repetida diversas vezes, quase como numa espécie de refrão musical, contém — assim como todo o texto — uma marcação bem característica do dialeto falado pelos negros no Sul dos Estados Unidos: o “ain’t”, que no inglês daqueles que tiveram acesso à educação formal seria correspondente ao “am not”, “não sou” em português. por que cargas d’água Frances escolheu transcrevê-la no dialeto sulista se Truth era do Norte e nunca esteve no Sul? parece-me que sua capacidade de fabulação é mais criativa do que a de Marius.
aqui, em contraposição ao texto anterior, Truth se dirige ao homem branco, ainda que se valendo das analogias cristãs, num tom mais audacioso, como quem toma os seus direitos com as próprias mãos, sem pedir licença. além do mais, há uma distinção clara entre a mulher branca, que é tratada como um ser delicado que precisa da ajuda de homens brancos para subir em carruagens ou saltar sobre poças de lama, e a mulher negra, que realiza os mesmo trabalhos braçais que o homem negro: arar, plantar e colher.
nesse balaio, gosto muito do spiritual (música religiosa cantada pelos negros escravizados estadunidenses) “Who’s gonna be your man?” interpretado por Ella Jenkins:
e ainda da poesia de Lubi Prates em um corpo negro: