recentemente, li “E se eu fosse pur(t)a” da Amara Moira, travesti putafeminista e doutora em Letras pela Unicamp. no livro, ela conta as experiências do período em que tirava seu sustento da prostituição. foi o primeiro livro “hot”, com descrições de cenas de sexo que li na minha vida, também o primeiro escrito por uma mulher trans. pois é. acho que isso diz muito da sociedade moralista, patriarcal, cristã, heterocisnormativa que a gente vive, embora eu tente correr disso tudo no meu dia a dia. mas exercícios de desconstrução são muito difíceis, a gente é empurrado o tempo todo pra norma. e, além de eu ter tido uma oficina de poesia com Amara no Sesc, ler seu livro foi maravilhoso para colocar a norma em suspensão.
marquei vários trechos importantes. a escrita é fluida, leve, e, apesar de a narrativa ser dura, eu preciso confessar que dei várias risadas e me identifiquei com muitos relatos. é interessante notar como há qualquer coisa de universal na lida com os homens... sim, “gostar de homem é comer lixo”, como diria minha amiga Marcel Couto. bem, dentre os trechos, eu vou comentar e fazer algumas reflexões a respeito de um em especial. Amara diz assim:
“Gosto de andar por aí de cabeça baixa, sem ter que enfrentar olhares e imaginar o que estão pensando ao me ver. Se as pessoas riem, faço todo um esforço para acreditar que deve ser por piada ou uma coisa engraçadinha que lhes ocorreu. Me ponho num mundinho cor-de-rosa sempre, um que me proteja. Não olho, não retribuo olhares, passo alheia a tudo o que me envolve. E eu realmente consigo acreditar, na maioria das vezes, que essas irrupções de riso ou giros abruptos de cabeça não têm relação comigo: há sempre uma justificativa que me surja rápido, a qual me agarro sem nem precisar de esforço. Mas tem vezes que a sincronia da minha passagem com esse riso soa estranha demais, me deixa insegura, agride. E tem vezes que, nessa insegurança, surge alguém que gosta de mim, de quem gosto, pra perguntar como é que aguento, como é que eu deixo e não vou lá cuspira na cara do infeliz. Como é que eu aguento é assim, fazendo a Alice. Porque se eu percebo o que se passa ao redor, a forma como me olham, o quanto não faço sentido, aí é me trancar no quarto e chorar.” p. 31
“Me ponho num mundinho cor-de-rosa sempre, um que me proteja. Fazendo a Alice. O quanto não faço sentido.”
essas frases ecoaram em mim. muitas vezes, já ouvi o quanto “vivo no meu próprio mundo, no meu próprio universo, em outra dimensão” ou que “sou muito tranquila, muito zen, que não pareço me importar com as coisas” ou ainda que “parei na idade do por quê?, que faço muitas perguntas, que pareço jornalista, que não tenho vergonha de perguntar o que não sei.” é engraçado analisar a visão que as outras pessoas têm de mim, não concordo com tudo, mas isso de criar um próprio universo meio mágico, meio paralelo, e me enfiar dentro dele, como a Alice de Lewis Caroll e a Amara fizeram, talvez tenha uma relação muito forte com o fato de eu ser uma mulher preta, um corpo dissidente da norma.
daí, lembrei de um trabalho que escrevi no primeiro semestre da faculdade de história da arte na unifesp, na disciplina de filosofia da arte. eu dei um jeito de falar de Michael Jackson e “Alice através do espelho” do Lewis Carroll, fiz um bem bolado com os teóricos da disciplina, algumas pinturas vistas ao longo do semestre e ainda ganhei a admiração do professor carrasco rsrsr. mas preciso dizer que essa foi a minha segunda chance de avaliação, porque o primeiro trabalho que tinha feito ficou uma bela bosta.
basicamente, fiz uma reflexão breve sobre a obra de arte que nos faz ‘dobrar os joelhos’, sobre a genialidade, sobre a loucura, sobre a imagem, sobre o espelho, sobre o duplo, sobre arte pop X arte “acadêmica”. de acordo comigo, lá no trabalho rs, “a arte que faz dobrar os joelhos, para Hegel (me desculpem, mas não vou reler Hegel agora rsrs), é a arte que segue o ideal clássico e que nos convida a ver o motivo em detrimento da aparência.” logo em seguida, eu rebato: “eu ‘dobro os joelhos’ para a arte que destrói e revoluciona os padrões vigentes*. (...) meu joelhos se dobram ao Michael Jackson.”
[*anos depois, me deparei com a definição de arte de um professor que tive na uerj, o Ricardo Basbaum. ele diz, em seu livro “Além da Pureza Visual”, que: “as artes plásticas seriam, deste modo, uma espécie de campo invertido do pensamento, um saber ao avesso - ou um avesso do saber -, constantemente pressionando e provocando turbulências no conjunto dos pensamentos estabelecidos.” essa definição norteia completamente o que penso sobre arte e literatura hoje em dia, e as sementes desse pensamento já estavam sendo plantadas lá atrás, quando entrei na graduação aos 19 anos.]
Michael Jackson, um corpo negro, com vitiligo, de aparência andrógina, com uma história de vida controversa envolta em especulações que colocam em xeque sua sanidade mental e seu caráter, artista genial, de versatilidade inovadora e impressionante. eu não tenho muito interesse na biografia de artistas — embora fatos da vida possam servir de matéria-prima pra obra de arte —, o que me interessa é o trabalho, aquilo que foi feito para ser exposto, para ser compartilhado. eu separo autor de obra, porque a obra tem uma delimitação específica, na qual a humanidade e suas complexidades jamais se encaixariam.
há muitas controvérsias sobre a questão do gênio na arte, do talento, da inspiração. na realidade, essa é uma discussão meio que já superada. atualmente o discurso vigente é de que arte é trabalho e estudo. eu não discordo disso, mas me pergunto se essa valorização da arte como trabalho, produção, não flerta com a filosofia do capital/cristianismo. “o trabalho dignifica o homem” é o mote cristão do capitalismo. honestamente, acredito que o sr. Joseph Jackson tenha colocado todos os Jackson Five pra trabalhar de maneira muito similar, mas apenas Michael Jackson foi Michael Jackson. daí, eu volto lá pro meu trabalho e acho que esse trecho aqui conversa bastante com a genialidade de MJ:
“Em Lacoste, o conceito de genialidade segundo Schopenhauer:
‘(...) consiste-se na aptidão para libertar-se do princípio de razão, para reconhecer as Ideias. Essa aptidão, que existe, pouco ou muito, em todos os homens, converte-se, porém, quando desenvolvida, numa anomalia, próxima da loucura. O intelecto liberto da vontade, que caracteriza o gênio contempla um outro mundo, que não o do resto dos homens prisioneiros de seus desejos. A loucura do gênio é o preço de seu poder criador, mas a consequência de sua solidão: Schopenhauer evoca ‘as sombras que acolhem na caverna aqueles que viram a luz do sol’. A lucidez do gênio liberto do querer individual separa-se dos outros homens, e a obra só pode ser, como reencarnações de Buda, um sinal de benevolência.’”
não consigo não cair de joelhos, em devoção, quando vejo uma criança fazendo isso aqui:
Michael Jackson entrou para o showbiz ainda na infância e nele permaneceu até o fim de sua vida. seu funeral, que aconteceu no ano em que entrei pra graduação e que me motivou a escrever o tal trabalho, foi um tremendo espetáculo. um corpo dissidente multitalentoso que passou a vida inteira sob escrutínio público, servindo de entretenimento e inspiração para o mundo todo. não me surpreende que ele tenha criado seu próprio mundinho particular em Neverland Ranch e o tenha batizado em homenagem à ilha fictícia Terra do Nunca do clássico da literatura infantil “Peter Pan”. outra personagem da literatura infantil, assim como Peter Pan, afeita ao escapismo é a Alice. se as arte visuais, ou mesmo as artes performáticas, não representam o visível, mas tornam visível, perceptível; o espelho — como metáfora do que separa o espectador da obra de arte — seria o equacionamento difícil do que está fora e do que está dentro.
em “Through the looking-glass and what Alice found there”, a menina se cansa de sua vida entediante ao lado do gato, resolve adentrar o espelho e viver aventuras inimagináveis. lá, encontra um jardim de flores falantes e a enigmática Rainha Vermelha, peça de xadrez que ganha vida dentro do espelho e que estabelece com a criança o seguinte diálogo:
“‘Well, in our country,’ said Alice, still panting a little, ‘you’d generally get to somewhere else — if you run very fast for a long time, as we’ve been doing’.
‘A slow sort of country!’ said the Queen. ‘Now, here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same place. If you want to get somewhere else, you must run at least twice as fast as that!’”
algo como:
“‘Bem, no nosso país’, disse Alice, ainda arfando um pouco, ‘a gente geralmente chega a algum lugar — se corremos rápido por um bom tempo do jeito que estamos correndo.’
‘Um tipo de país devagar!’ disse a Rainha. ‘Agora, aqui, veja, você pode correr o máximo que puder e continuará onde está. Se quiser chegar a outro lugar, você tem que correr, no mínimo, duas vezes mais rápido!’”
o país de Alice seria o lado de fora do espelho, o da humanidade? e o da Rainha seria, portanto, o lado de dentro do espelho, onde o fantasma da humanidade estaria refletido? esse reflexo pode ser visto então como o duplo da obra de arte, ou seja, a história narrada dentro do espelho é a metáfora da obra de arte, a representação estética do mundo sensível. e, por isso, para sair do espelho e voltar ao mundo da humanidade, é necessário correr duas vezes mais rápido.
ou ainda: se você é um corpo dissidente da norma, quantas vezes mais rápido será preciso correr pra chegar a algum lugar? quantos esforços e sacrifícios serão necessários? o pai de Beyoncé, durante sua infância, por exemplo, a submetia a treinos de canto e corrida ao mesmo tempo para que ela fosse capaz de cantar e dançar no palco, como o Rei do Pop foi capaz. e hoje, ainda que seja a recordista de todos os tempos do grammy, a Rainha do Pop nunca venceu na categoria álbum do ano — sim, estou com ódio e jamais vou superar.
diante de tudo isso, do quanto tais corpos não fazem sentido, como não fazer a Alice, como não se pôr num mundinho cor-de-rosa sempre, um que proteja?
o meu mundinho seria assim: