no fim de 2022, li o livro Piecing Me Together (algo como “Juntando Minhas Peças” em português) de Renée Watson para preparar um seminário em uma disciplina da pós-graduação em Letras da UERJ.
a obra é voltada para o público jovem adulto/adolescente, e não tive como não retornar à minha própria adolescência. a protagonista, uma menina negra, gorda e pobre cursando high school como bolsista em uma escola particular cheia de gente branca e rica, por coincidência do destino tem o meu nome e seu talento artístico é a colagem.
o tema da colagem perpassa toda a obra e funciona como uma metáfora dos processos pessoais vividos por ela. a adolescência, por si só, é um período desafiador de construção da própria identidade e da imagem que se quer apresentar ao mundo. a colagem, por sua vez, é uma técnica que consiste em reunir papéis, recortes ou outros materiais pré-existentes, que provavelmente não seriam vistos juntos, para dar vida a uma nova imagem única. a personagem se apropria de objetos cotidianos, e muitas vezes considerados feios, para transformá-los em algo novo, reescrever a história e torná-los belos. através da colagem, a protagonista busca a sua própria completude, que descreve como sendo estilhaçada em muitos pedaços ao sair de casa para ir à escola. o amor de sua mãe, muitas vezes, é a cola capaz de reunir esses pedaços ao retornar ao lar. é ao expor uma de suas colagens, incluindo a si mesma e a figura histórica do explorador York, numa galeria em um evento artístico homenageando a personagem Natasha Ramsey, garota negra assassinada pela polícia, que Jade Butler se sente completa e livre.
bem, eu fui uma menina negra que frequentou colégios particulares durante toda a vida escolar e, com muita frequência, uma das únicas negras das turmas pelas quais passei. eu diria que muitas das minhas questões psíquicas mal resolvidas vieram dessa experiência de solidão e não pertencimento num período de formação tão importante.
só que, ao contrário da Jade do livro, a quem invejo muito pelo elevado grau de consciência racial e social apesar da pouca idade, eu não tinha essa visão tão avançada na época. eu achava que me sentir um peixe fora d'água na maior parte do tempo tinha muito mais a ver com o fato de ter sido "desterritorializada" aos 10 anos, quando deixei a minha cidade natal, o rio de janeiro, rumo à belém, para viver junto de meu irmão, minha mãe e sua família.
enquanto a Jade usa a colagem para lidar com as vicissitudes do adolescer, eu usava a escrita.
comecei a escrever tão logo aprendi a ler, sempre tive diários, estimulada por minha mãe. mas a colagem surgiu num momento muito específico: no ano de transição dos 15 pros 16 anos, quando algumas mudanças ocorreram na minha vida, e eu dei uma espécie de salto de amadurecimento.
além dos diários, eu também escrevia cartas com frequência pra uma amiga que morava no rio. pois é, na minha época, a internet não era acessível como é hoje. aos 14 anos, minha mãe invadiu minha privacidade e leu um segredo cabeludo. de início, levei uma bronca, mas depois, com mais calma, ela conversou comigo e me orientou.
provavelmente rolou um trauma aí. não tão forte o suficiente para que eu abandonasse a escrita, mas significativo o suficiente para que eu mudasse meu estilo. se antes eu descrevia meu cotidiano, aos 15 passei a escrever de modo mais cifrado, me valendo de metáforas pra ventilar os desafios emocionais que enfrentava. acredito que tenha sido assim que me tornei poeta.
muitos dos poemas que eu escrevia traziam a questão do não lugar, do meio do caminho, da identidade perdida pela terra... não dá pra dizer que isso tudo não faça parte do bolo que me dá forma, mas muitas outras camadas só foram exploradas com o avançar da idade e da escrita-leitura.
eu existo apenas nos
entremeios, no meio do
caminho, nem lá nem
aqui. em ir e vir, mas
sem vir, com um ir
carregado de passado. é
aí que meu eu consiste.
aos 16, para me despedir da menina doce que colecionava revistas capricho, eu recortei todas elas e fiz uma colagem na capa do meu diário. mais uma vez, fui incentivada pela minha mãe: "nossa, isso que você está fazendo é um exercício incrível de criatividade!", me disse muito animada.
enquanto a Jade usa a colagem como forma de recriar a realidade, se apropria de restos de papéis e outros elementos para transformá-los em algo belo, eu confesso que estava mais interessada em destruir. eu queria destruir aquela imagem de menina doce e meiga que me custava tão caro e construir uma nova: a de adolescente rebelde (risos).
segundo Jânderson Albino Coswosk e Maria Aparecida Andrade Salgueiro em seu artigo “Espectros de Baldwin”,
A colagem e a montagem – métodos caros a Warburg e revisitados por Peck – tomaram enorme impulso com a reprodutibilidade técnica da imagem no século XIX e impactaram a maneira de se refletir sobre a historicidade da arte e o fazer artístico. O terreno vertiginoso preparado por Warburg em seu Atlas aponta para um abalo narrativo na história da arte através do uso da fotografia, quando articulado aos mais diversos gêneros artísticos e textuais. Esse abalo deixou diversas vias abertas no então modelo teleológico de pensar a historiografia da arte, ao também dar vasão, com o surgimento das práticas poéticas experimentais e visuais, à montagem enquanto método híbrido que articula o arquivo-documento com o plástico e o verbal, engendrando um protótipo de novas e múltiplas narrativas históricas em experimentação.
de acordo com o Dicionário Oxford de Arte, a colagem é:
Técnica pictórica em que fotografias, recortes de jornais e outros objetos adequados são colados sobre uma superfície plana, frequentemente combinando-se em áreas pintas. (...) tornou-se uma técnica artística reconhecida em princípios do século XX, quando seu materia de base passou a ser composto de imagens produzidas em massa, publicadas em jornais, propagandas, ilustrações populares e baratas etc. (...) os cubistas foram os primeiros a incorporar a suas pinturas objetos reais, como pedaços de jornal, dando-lhes por vezes, deliberadamente, um duplo sentido: o de coisa real que eram e o elemento gráfico. Os futuristas deram à colagem um direcionamento social e ideológico, enquanto os dadaístas utilizaram-na para seus próprios propósitos anárquicos. Foi adotada pelos surrealistas, que enfatizavam a justaposição de imagens disparatadas e incongruentes.
no ensaio “O Legado da Prática da Colagem Negra Persiste” de Kemuel Benyehudah, ele diz que (tradução minha):
Historicamente, o cânone artístico ocidental apagou e subestimou as contribuições de artistas negros que trabalham com a colagem. O que é lamentável, considerando que artistas cubistas brancos como Georges Braque e Pablo Picasso se inspiraram na arte tribal africana durante a insurreição da Revolução Industrial. Nos dias de hoje, colagistas negros reagem a questões contemporâneas do racismo sistêmico de modos próprios e abrangentes. (...) Esses artistas multifacetados não têm compromisso com as representações normativas da figuração negra, eles vão além do script das expectativas acadêmicas de artistas se tornarem especialistas na técnica formal, (...). De maneira consciente, os trabalhos que se utilizam da técnica da sobreposição revelam convicções profundamente interpessoais que se entrecruzam na tela ao mesmo tempo que mobiliza o espectador a contemplar suas próprias relações individuais com o objeto em questão. Assim, comunicam de maneira efetiva que estão trabalhando como artistas em uma sociedade politizada, além de proporcionar uma intervenção visual bela que mostra a complexidade da experiência da negritude.
nesse bojo da colagem enquanto prática artística e pensando na relevância dela para a comunidade afro-estadunidense, acredito que Mickalene Thomas seja um farol importante a ser contemplado:
Le Déjeuner sur l’Herbe: Les Trois Femmes Noires, Detail, 2009, rhinestones, acrylic and enamel on panel
em “Le Déjeuner sur l’Herbe: Les Trois Femmes Noires”, ela faz uma releitura da obra “Le Déjeuner sur l’Herbe” do artista impressionista francês Édouard Manet, que viveu no século XIX. bem afrontosa!
eu decidi fazer a minha própria releitura de uma obra clássica, “L’Origine du Monde”, de outro impressionista francês, Gustave Courbet. essa colagem aqui, eu chamo de “a origem do mundo é uma buceta preta”:
gosto muito de pensar a colagem como uma técnica de reaproveitamento, de apropriação de restos, de lixo, de pedaços rejeitados para construir uma imagem nova, para ampliar a capacidade de imaginação e de criação. observando meus escritos, percebo que tenho uma tendência muito grande a explorar toda a minha amargura por meio da poesia. eu adoro os sabores do chá preto sem açúcar, do tabaco, da coca zero, do chocolate meio amargo. minha poesia é carregada de passado, mas tenho me sentido revigorada com a possibilidade de sentir outros gostos. e a colagem ultimamente tem sido uma espécie de campo ampliado do meu fazer poético, um exercício criativo de imaginar novas possibilidades e construir outros futuros, coisa que aliás é muito bem explorada pelo afrofuturismo.
e como colagem e poesia parecem andar juntas, uma das melhores amigas de Jade, Lee Lee Simons, é poeta e escreve um poema lindo no fim do livro, que traduzi:
Garotas negras estão se levantando
Nossos corpos negros, sagrados. Nossos corpos negros, santos.
Nossos corpos, de mais ninguém. Cada sorriso, um protesto. Cada risada, um milagre.
Peça por peça, nos costuramos de novo. Essa tapeçaria de garotas negras, esse corpo negro que é arrastado à força da carteira escolar, atirado ao piso de linóleo, arremessado na beira da piscina, abordado pela polícia e pressionado contra a grama, preso para nunca mais retornar ao lar, que leva tiros à porta de casa, em sofás enquanto dorme e sonha com o dia seguinte.
Nossos corpos, uma colcha que conta histórias da travessia do Atlântico, de raízes arrancadas e replantadas. Nossos corpos, um mosaico de línguas esquecidas, de canções de liberdade e orações de lamento.
Nossos corpos, não mais desrespeitados, objetificados, escrutinizados.
Nossos corpos, de mais ninguém. Cada sorriso, um protesto. Cada risada, um milagre.
Nossos corpos estão se levantando. Nossos pés marchando, pernas dançando, nossas barrigas gestando, mãos se erguendo, nossos corações sarando, vozes se pronunciando. Nossos corpos tão negros, tão bonitos.
Continuam aqui. Se levantando. Se levantando.
poema que certamente foi inspirado em “Still I Rise” da Maya Angelou traduzido para o português pela Lubi Prates:
Ainda assim me levanto
Você pode me marcar na história
Com suas mentiras amargas e torcidas
Você pode me esmagar na própria terra
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.Meu atrevimento te perturba?
O que é que te entristece?
É que eu ando como se tivesse poços de petróleo
Bombeando na minha sala de estar.Assim como as luas e como os sóis,
Com a certeza das marés,
Assim como a esperança brotando,
Ainda assim, eu vou me levantar.Você queria me ver destroçada?
Com a cabeça curvada e os olhos baixos?
Ombros caindo como lágrimas,
Enfraquecidos pelos meus gritos de comoção?Minha altivez te ofende?
Não leve tão a sério
Só porque rio como se tivesse minas de ouro
Cavadas no meu quintal.Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.Minha sensualidade te perturba?
Te surpreende
Que eu dance como se tivesse diamantes
Entre as minhas coxas?Saindo das cabanas da vergonha da história
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e pulsante,
Crescendo e jorrando eu carrego a maré.Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.
Jade faz muitas colagens ao longo do romance, as quais só podemos imaginar... numa delas, se utiliza de coisas pretas e belas pra compor sua imagem:
Today’s collage is made up of words and cutouts from magazines.
Things That Are Black and Beautiful:
A Starless Night Sky
Storm Clouds
Onyx
Clarinets
Ink
Panthers
Black Swans
Afro Puffs
Michelle Obama
inspirada por Butler, fiz a minha própria colagem com coisas pretas e belas que tinha à minha disposição:
o céu à noite
búfalos
meu gato preto Sirius
Cleópatra ou minha gata preta Isis
as mãos negras que cavucam a terra preta